AUTORA:ELIZABETH LUIZ SOARES – Psicóloga CRP-08892 e Doutora em Psicologia pela UFRJ
*Artigo originalmente publicado no livro Da Contratransferência à Criação, Editora Letra Capital, 2008
“O pesquisador pretende ser aquele que recebe e acolhe o estranho. Abandona seu território, desloca-se em direção ao país do outro, para construir uma determinada escrita da alteridade e poder traduzi-la e transmiti-la”.
Marília Amorim
A noção de contratransferência encontra-se entrelaçada a princípio com dois outros conceitos: alteridade e implicação subjetiva.
Tentaremos estabelecer algumas relações com referência aos seguintes autores: Louise Urtubey, Penot, Mango e Voizot. É importante ressaltarmos na clínica, o desejo de ser analista, favorecendo assim a formação das primeiras disposições subjetivas do analista e a reação contratransferencial (Penot, 1994). Nascendo então a possibilidade de investigar e entender através do seu trabalho a sua prática.
Observamos a importância da disposição subjetiva na relação contratransferencial. É através dela que se vai construindo a dialética analista-cliente Neyraut “a contratransferência do analista precede a transferência do paciente”. É importante que as respostas subjetivas do analista não parem de alimentar uma relação dialética, construindo assim a ligação transferência – contratransferência, num processo de alteridade analista – cliente. É a contratransferência que mantém a representação de alteridade, podendo servir de objeto de cura, na medida em que o cliente seja capaz de uma transferência objetal. É importante que o analista se sinta implicado a fim de estabelecer seu próprio estilo, como um facilitador para poder captar suas contratransferências no jogo da presença / ausência, do dito / e não dito.
O analista pelo seu contratransferencial se vê ligado muitas vezes à sua história de vida, onde estão em jogo a sua existência e os seus problemas do momento. Quando o analista tem uma tomada de consciência de alguns de seus conflitos inconscientes, gera uma certa incompletude essencial, tornando-o implicado subjetivamente nesta relação dinâmica entre o Eu e o Outro. O outro-analista e o outro-cliente. Mas, então, o que vem do outro-cliente e do outro-analista? Tudo acontece do lado -analista? Esta relação dinâmica entre o analista-cliente é caracterizada pelo que o analista em função da sua receptividade imagina que lhe chegue “lá de fora”, do outro-cliente.
No cliente observamos o desejo de uma experiência inovadora, evidenciada por conflitos não identificados. No analista observamos as dimensões da implicação vividas pelo seu contratransferencial, fatores do seu passado, do presente e projetos futuros que o condicionam. A implicação subjetiva do analista se estabelece pela importância que ele outorga a essas diversas dimensões pela sua ponderação afetiva e pelo grau de energia investido por ele. É através das ressonâncias afetivas que surgem na relação analítica que se fortalece a implicação subjetiva.
Muitas vezes as experiências do analista estão camufladas pela máscara da eficácia profissional; pelo código moral do trabalho dedicado ao outro. A proposta do analista é um engajamento de mudança pessoal. É nas relações dialéticas entre analista-cliente que as disposições estruturadas se atualizam e tendem a reproduzir o duplo processo de interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade, num processo eficaz de alteridade.
O trabalho de contratransferência consiste em elaborar a base do funcionamento do analista na situação analítica. Consiste em estar presente na relação física e psíquica, escutar com uma atenção flutuante, se representar, fantasmar, viver afetos, se identificar aos aspectos inconscientes do outro, se recordar, se ligar, se auto-analisar, interpretar e fazer reconstruções. (Maria Luiza, Seminério 2001 p.9).
Urtubey nos mostra um trabalho onde o Eu “assume” uma responsabilidade de compreender o Outro e o seu próprio outro. É nesta relação de alteridade que se vai construindo a dinâmica da relação analista-cliente. O estudo da implicação e o seu contratransferencial se torna importante para se compreender o sentido dos atos do lado do “analista”.
As mudanças de registro transferencial constituem o “fundo” das sessões, a trama, atribuída por Louise Urtubey de “a tela” / “cortina do sonho”. A contratransferência pode ser ligada a dois elementos: figura, aquilo, tal como é apresentada e fundo naquilo que se estrutura. O funcionamento mental do analista leva-o a se manter no silêncio, dando ao outro o lugar de objeto.
Em seu trabalho de implicação Kohn cita Maria Huelano em seu diário …eu tenho a impressão que eu não olho em torno de mim… como se eu tivesse posto uma venda sobre os olhos, para limitar-me a meu mundo interior, não enxergar em tomo de mim o que é belo, o que pode me ajudar a compreender e a superar os maus momentos. Talvez bastaria dar uma olhada em torno de mim para tornar relativa minha angústia comparada a do universo que me rodeia. É pela implicação subjetiva numa relação de alteridade que o analista possibilita o aprofundamento do “olhar” do cliente, favorecendo, então, o aparecimento das emoções encriptadas no cliente.
É na relação contratransferencial do analista e na sua implicação subjetiva, que se sustentam as modificações das realidades do analista, que de alguma maneira induzem as modificações transferenciais. É no contra transferencial que se dão as bases do vínculo , criando o espaço transicional relação analista-cliente.É através desta relação que o analista permite que o vivido se transforme em narrativa.
É na dialética analista-cliente construída pela narrativa do cliente que a ambivalência-ambiguidade vão se delineando. A ambivalência é representada pelas emoções vivenciadas pelo analista no seu contra transferencial, num processo contínuo e descontínuo, desenvolvendo, assim, a ambiguidade como meio de unir os contrários. A ambiguidade se faz na dialética pela ressonância vivenciada no contra transferencial do analista. Servindo para o cliente como objeto de cura numa saída para reconstrução de seus afetos.
Neste processo de implicação é importante reconhecermos a “distância” entre analista e cliente, algo a ser construído e reconstruído nesta relação, em função de momentos de jogo de presença/ausência, distanciamento/ aproximação que o analista tem o poder de manejar e identificar, como núcleo de um trabalho analítico. Pierra Aulagnier nos dirá: “aí temos a distância que torna possível a aquisição e utilização de outro saber, entretanto, paga com a perda de um saber sobre o afeto e talvez um afeto do saber próprio do tempo da experiência”. Esta distância frente a implicação, ao nosso ver, corresponde ao tempo de elaboração da contratransferência (Urtubey, 1994, p. 1271).
A temporalização que se efetua no contexto contratransferencial consiste na capacidade na qual o analista está disposto a deslocar-se em sua própria história e na do cliente para que possa ser dada margem à interpretação. Ao citarmos W. Benjamin e o seu conceito de temporalidade, tentamos relacionar o analista-cliente. A importância da escrita para que se possa “rememorar” a sua história. A procura do passado no futuro, no passado os primeiros acordes do futuro. Na clínica a obra e no conjunto da obra a época e na época, a totalidade dos processos históricos são preservados e transcendidos “na análise do pequeno momento singular se descobre o cristal do acontecimento total” (Muricy, 1999 pg. 18).
A “experiência” (die Erfahrung) e a “vivência” (das Ellebuis) são fundamentais no processo analítico. A “rememoração” (das Eingedenken) é uma forma própria vivida na dupla analista-cliente.É a relação que não se nutre mais de uma forma estática, mas sim de um processo dinâmico vivido “entre dois” e sustentada pela dialética das diferenças, encontrada no processo analítico. É pela “fluidez” da relação analítica que o cliente se torna capaz de construir seu “mosaico”, este, caracterizado pela sua história de vida. Cabe ao analista, pelo seu contratransferencial numa relação de alteridade e implicação subjetiva, possibilitar a reconstrução da história de vida do cliente.
É no trabalho contratransferencial que se sustenta o processo analítico e se atualiza os referenciais temporais e espaciais, favorecendo a simbolização. O analista tem como atribuição, o poder de por em palavras, as representações do aqui, agora e depois, preservando a distância e relacionando a temporalidade.
Guillaumin mostra em seu artigo “Um futuro por repetição” que em certas sessões realizadas pelo analista, que ele conserva sua capacidade de fazer seus vínculos e de se deslocar imaginariamente no tempo e no espaço, permitindo que sobreviva na dupla analista-cliente, uma distância que torna possível a colocação em palavras das experiências vividas.
A tomada de consciência do tempo na contratransferência é oposta à força da compulsão a repetição. Ela se baseia na capacidade do analista de interpretar pequenas diferenças, que ele percebe nele e no seu sistema representativo (Voizot, 1994). Observa-se no cliente a dificuldade de simbolização e de construção fantasmática, não se trata de uma compulsão mental ou comportamental, mas uma repetição induzida no outro que não se constitui como um fantasma de transferência do cliente. O analista deve registrar que o determinismo é a dificuldade na reatualização de uma impressão real, que se situa no sujeito constituído do fantasma. O entendimento do determinismo facilitaria a construção de uma contratransferência espontânea (Penot, 1994).
Louise Urtubey em um dos seus trabalhos nos cita Kant: “Os fenômenos não podem existir em si, mas somente em nós”. Devemos pensar a contratransferência, no “entre-dois”. Não se deve pensar a contratransferência sem o transfert. Trata-se do entre dois, entre cliente e analista, mas ainda de um entre dois do objeto contratransferencial em si mesmo.
Louise Urtubey chama a “contratransferência-manifesta” como desordem, alteração, traço do outro em mim, vertigem de seu funcionamento psíquico no meu. Ressaltamos, então, a relação de alteridade na contratransferência e a perturbação que se abre diante de nós e suas diversas manifestações clínicas.
A contratransferência é o resultado de uma convergência, de alteridade dupla, aquela do outro-cliente e aquela do outro-analista. A contratransferência é a estranheza do outro na minha estranheza. É a aparição do estranho na atividade analítica. Cada análise é uma experiência de alteridade do eu no outro e do outro no meu eu e do “íntimo estranho” em nós (Mango, 1994). A contratransferência designa talvez esta capacidade do analista de se deixar habitar pelo outro, de escutar sua língua e de dizer em sua própria, para que uma terceira, aquela do estranho, possa enfim se entender. Cabe ao analista se implicar no seu desejo de analisar.
O processo analítico é delineado pela ambiguidade e pela dubiedade e se concretiza na construção de um modelo pessoal e inequívoco de expressão, representado pela dialética no contratransferencial. É na prática analítica que o analista entra em contato com a alteridade, construindo assim o seu duplo através da sua prática. O duplo, com suas conotações de alteridade e estranhamento, de contradição e ambiguidade.
A contratransferência e o papel da criação no processo analítico perpassa inicialmente pela importância particular nos processos de identificação. As imagens da eclosão da representação dos afetos aparecem como uma metapsicologia do processo de criação. As ligações entre os afetos, representações, emoções e fantasmas são trabalhadas e reforçadas num processo de construção e reconstrução analítica. As referências às imagens são evocadas nos processos de identificações, caracterizando o íntimo e pessoal da dimensão transferência-contratransferência.
Ao falar em criação, Cahn (1998) nos traz três tipos diferentes de interpretação: a do historiador, a do arqueólogo e a do analista. O primeiro interpreta a partir de um número suficiente de fatos com dados disponíveis. Com estes, ele recria a realidade histórica. O arqueólogo reconstrói esta realidade, segundo Cahn (1998) de uma maneira quase delirante, onde vestígio mutilados ainda vivos, fragmentos da verdade histórica, são reordenados de acordo com sua descoberta. Já o analista não se utiliza da verdade histórica, mas da realidade psíquica. Junto ao analisando, ele faz da representação, da percepção desta última, uma nova criação, transformando como diz Cahn (1998), o passado em lembrança e a repetição em sentido. Neste caso, o criador é o analisando que permite a ligação de seus significantes a múltiplos significados, criando assim novos signos. Como podemos ver, são três maneiras distintas de criação que partem do passado com a intenção de modificar o futuro. A recriação ou elaboração daquilo que passou é a tentativa do sujeito de lidar com o presente de forma diferente (Maria Luiza Seminério, 2001, p. 106).
O analisando busca nos símbolos do passado reconstruir seu significado, num movimento “zigzag” entre passado/presente/passado.Trabalha com os significantes do desejo da função materna e sua voz (Sofia Mijoila, 2001). A partir desta elaboração reconstrói a si mesmo. Sabemos que o processo analítico através de um fluxo contínuo/descontínuo, nos leva a prosseguir criando e recriando, refletindo, comparando, analisando e sentindo pelos caminhos da nossa história.
Referências Bibliográficas
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VOIZOT, B. Temporalité et Altérité dans lê trail contre -transférential. Revue Française de Psychanalise, vol. 5, 1994, p. 1607.
Diretora do Blog
Luci Pereira
CRP 05/4475. Mestre em Psicologia Social; Pós-Graduada em Recursos Humanos; Psicóloga; Dinamicista; Psicodramatista e Coach. Consultora de organizações públicas e privadas de médio e grande porte, nacionais e multinacionais com atuação no planejamento e execução de programas de treinamento e desenvolvimento de pessoas, elaboração de projetos de consultoria voltados para pesquisas e comportamento organizacional como subsídio para formulação de políticas e/ou planejamento dos sistemas técnicos de RH, orientação vocacional e profissional, coaching e mentoring.Participação como palestrante em congresso nacional de Psicodrama. Consultora DISC E-TALENT.